14.3.10

nenhum lugar após o outro
casebres barracas taludes secretárias vazias
busco a paragem não tenho tempo de respirar
nas mãos pesam-me os cadernos curvam-se-me as omoplatas
folhas sem mácula estreitam-me a faringe
imprimem-me no colo o seu esqueleto cravam radículas e eu
para me libertar componho fonogramas
outras vezes visualizo
pequenas tábuas escurecidas com tintas a óleo imagino-me
sentada na asa de uma sombra de pincel na boca
as mãos sujas de pigmentos
azul de Prússia
rosa cal
terra de Siena queimada
sanguínea
imobilizo-me observo-te em crescente distância
não sei como remover estorvos
componho o vestido desgasto-me
circular tão circular não digo o que sinto
não quero escrever não quero recomeçar
não quero prosseguir estrada fora ainda.


15.2.10


© filipa júlio in espiral medula

10.2.10

um outro lugar um primeiro movimento
sigo nauseada pelo dorso das encostas
chego cedo partira mais cedo ainda
encaminho as crianças pela ladeira
desemboco lá no alto na praça
rodo a chave no portão prometo-me uma mesa de autópsia
um caderno em branco uma vista sobre a avenida um dicionário
uma biblioteca no colégio escuso-me
tropeço nas tabelas nos requisitos nos procedimentos
desenho atendo o telefone acorro a reuniões
é certo que quase me esgotam desculpo-me
galgo o fim de tarde na pressa do regresso
ofegante aspiro ao embalo perdido da locomotiva
cerro por instantes as pálpebras um micro-sono interior
insulto em surdina as viaturas em excesso de velocidade
corro até à paragem escorrego
um destes dias torço o salto do sapato
sem tempo para um ponto de vista para lá da passadeira
das poças de água sujas pelos tubos de escape da luz do semáforo
penso nos compassos nas travessas e linhas de ferro
não mais cosem sulcos nas colinas ao longo dos meandros do rio
por instantes sou um peixe mergulho
todos os dias revejo as instruções

partir em caso de emergência
procurar a parede mestra reunir os filhos esperar
a queda dos sarrafos dos alvéolos de cimento armado das tijoleiras
suster o fôlego até à réplica indiferente contar até cinquenta
até à próxima ajuda humanitária até ao próximo herói contar até cem

em caso de pandemia reter a respiração
evitar a micropulverização do vírus ditar quarentenas
colocar a máscara aguardar a vez esperar

em caso de crise suster o emprego ser flexível
não reclamar dos turnos extensos das cadeiras e salas vazias
há salas empregados e trabalho em excesso
queixam-se empresários de que os asfixiam
que façam fila na paróquia na organização não governamental na associação
que não contraiam empréstimos nem gozem férias tropicais
que vivam afinal as suas pequenas vidas enquanto na televisão asseguram
a salvaguarda das paredes do hemiciclo
os hospitais as escolas a cidade ruirão mas elas não
serão o garante do sistema o abrigo da democracia
todos os dias revejo as instruções

em caso de emergência
saber como não partir descobrir o esteio
prender-me à ramada às terras férteis do aluvião
subir à praça em surdina trautear compassos até à canção
a plenos pulmões a harmonia efémera o risco que me tragam o poema.

17.1.10


© pedro tudela in I me...mo I


encosto-me na ombreira de alumínio
um néon distancia-me do bulício observo
trajectórias de ausências céleres como balas perdidas
atento se me derrubam logo me levanto
um morto-vivo um corvo arfante um cisne negro
aliso penas distribuo-as por poemas
capturo-as em ecrãs de cristais líquidos
nada por revelar
diante de nós um percurso sobre estacas
uma manhã de inverno
atento se me traga o vazio
logo me levanto atento
se me enlaças
as falanges
a arcada do torso
o sexo.

7.1.10


DrGica in pescada nº5

4.1.10

tento afastar-me iludir impressões químicas
um gesto atrás do outro uma pulsão sobre o diafragma

abro as mãos em concha sobre os olhos
coloco-as na extremidade do ouvido
uma corneta acústica para lá da massa da paisagem
determino depressões profundidades atmosféricas
emergindo de uma caixa cega onde reservo
pontos de fuga
poeiras que lembram o estio
socorrendo-me de palavras para um poema de ano novo
como quando dizes

o teu cabelo curto ao atravessares o bairro das oliveiras
o pano que cobre a tua pele o mar da palha.

25.12.09


© pedro tudela in I me...mo I

agora, vou tratar dos acompanhamentos do perú, da maçã com limão, açúcar amarelo e canela que, no forno, estufará sob a massa de areia, do pudim do abade e das garrafas de porca de murça.
tudo para receber os que estarão presentes.

quanto aos ausentes, reservo-vos, desde sempre, um lugar no coração.

21.12.09


(caneta sobre papel, dezembro 2009)

12.12.09



(novembro 2009)

23.11.09



asahi pentax.


17.11.09

domar o incómodo reajustar a maquilhagem
o aperto de circunstância
nas relações contratuais ser o próximo assalariado sê-lo com
diligência transparência ensejo
assegurar o cumprimento da missão
reanimar activos moribundos ah um amor moderno é esse assim
do tipo que tem uma cozinha ikea
uma rede social em cada tecla
tarefas executadas com eficácia e presteza
as crianças no colégio os leasings garantidos
as compras do mês asseguradas

ah um amor moderno o meu
distrai-se coitado agita-se crédulo
contradiz-se pensa que vestir no dia da vernissage
como lhe ficaria bem um par de sapatos vermelhos
ser Dorothy no tabuado da galeria
um bolso de recensões literárias

ah um amor moderno cheio de culpa contemporânea.

16.11.09



(caneta sobre papel, novembro 2009)

as mulheres que, em breve, deixarei de poder desenhar, no comboio.

10.11.09


© carlos júlio

2.11.09



O viajante


O viajante é um projecto multidisciplinar, centrado no cruzamento de diversas leituras fotográficas de um romance de Italo Calvino, Se Numa Noite de Inverno Um Viajante. Nele, Calvino propõe construir um romance a partir de diferentes começos, fragmentos narrativos que conduzem o leitor a lugares distintos, construindo tipologias que organiza segundo categorias que funcionam numa lógica simbólica e interpretativa que vai da névoa, da atmosfera ao apocalipse.

A viagem é um tema eminentemente fotográfico e o fotógrafo tem sido, desde o início, um viajante, um observador e uma testemunha. Alguém que se desloca e ao deslocar-se altera o seu ponto de vista. As fotografias resultantes são fragmentos, vistas parciais, possibilidades de ponto de vista que nos dizem do lugar do fotógrafo e do que tinha em frente; não nos dizem nada. Mas são todas potenciais narrativos e por isso, quando se cruzam com o espectador, dizem tudo. Esta ambiguidade, que a natureza da fotografia lhe empresta, torna-a num instrumento privilegiado para pensar a nossa relação com o mundo, e construir a nossa própria narrativa. Tal como a pintura, a fotografia é una cosa mentale.

O que se apresenta é uma rede organizada a partir de um conjunto de pontos de vista de diferentes observadores-leitores-fotógrafos construídos a partir das possibilidades narrativas propostas por Calvino e esta rede é tecida a partir de leituras deste núcleo inicial envolvendo diversas práticas artísticas da palavra à escrita, do som à performance, da pintura ao vídeo.

O viajante é uma experiência colectiva proposta aos sentidos do leitor-espectador. Não por acaso, o romance começa numa estação de caminho de ferro…

Francisco Feio

31.10.09


© agrafo.

que bom tê-lo de volta aqui
.

20.10.09


chego tarde evito a quarentena dos aflitos

arrumo o quarto a secretária os elos os sobressaltos a crónica da anemia

aliso a cervical de esguelha observo quem se aproxima

no mouth no neck no rest

observo raparigas que lêem

hoje uma caiu nos braços de um rapaz tranquilo amparámo-la até chegar o INEM

a gabardine do revisor protegeu-a quando chovia

ao atravessar o cais para a praça de táxis

revejo a imagem de um outro rapaz que lia Virginia Woolf apoiado

no estofo azul dos bancos da locomotiva

tem agora os pés salgados pela água do estuário

levado por um rio de prata por peixes estranhos

por tantas melodias e eu

desenho estruturas metálicas pontes passadiços plataformas

desenho raparigas que lêem nos transportes públicos desmaio

ultrapasso os condicionalismos da minha mobilidade

não tenho carta nem rota

a linha imaginária entre dois estratos em silêncio.

13.10.09

pilhas de livros no chão da livraria na mesa no balcão
uma cave onde se alojam volumes e segredos

longe da montra sobre a rua face a face

uma casa de brinquedo um conto de reis

uma resma de livros nos dedos manchados de tinta.

já passa das dezanove encerras o escritório

antes de subir contaras

geométricos azuis-bébé verdes-retrete azulejos
polidos
o aleatório visual transformado em pauta no córtex do dia

contaras depois as horas os estalidos do isqueiro os requerimentos as alocuções

as mudanças de tonalidade no céu colhido pela janela basculante

observaras os rolos de fumo acumulados na massa de ar do compartimento

atribuíras-lhes palavras um jogo mas

adormecida fica a máquina de escrever agora que se foram o sócio e a secretária

os lances de degraus atravessam-se no sentido contrário e


num sopro de laca o Outono varre a cidade
da penumbra dos cedros do Líbano às folhas de carvalho
que crianças perseguem no saibro vermelho.


6.10.09

sentimental tão sentimental hoje
morreram Mercedes

G. Harrison
Brel
não sinto a falta de Lennon aliás nem sabia que sentiria a de G. Harrison
se hoje não tivesse despertado ao som que R. atribuira à sua crónica

frente a frente com a morte às cinco e meia da manhã
uma morte estranha
nada geracional
apenas mortos aqueles para quem olhara achando que
um dia vestiria um casaco de veludo glam rock teria
um namorado de vasta cabeleira para dançar o slow numa festa de garagem
longas pestanas botas brancas mini-saia
um dia de liberdade por certo sentimental
tão sentimental.

3.10.09




(caneta sobre papel, setembro 2009)

30.9.09



(caneta sobre papel, setembro 2009)

28.9.09


(caneta rotring sobre papel, 1985)

24.9.09




(caneta sobre papel, setembro 2009)

o reflexo da rapariga no comboio, como ele é.


© cj

aqui, em espanhol.

22.9.09

os quartos cheios e eu entalada por corredores de silêncio
tragada por mim própria insone

sem lugar outro para deambulações ou equívocos
sem interlocutor ou reflexo

escolho livros das estantes empilho-os junto ao sofá

caiem
durante a noite da mesa de cabeceira
pesam-me o sono o peito os bolsos a carteira

entopem passagens
inquieto-me
perpassam-me sombras de poemas
velozes como fotogramas

desenho
árvores de palavras
equações de sobressaltos

impeço-me de respirar.

21.9.09

no último dia de verão, para F.

9.9.09


(tinta permanente e aguarela sobre papel, sem data)

7.9.09


© cj

como sempre identificarei este verão pela leitura de alguns livros
Os meus prémios do Thomas Bernhard
A mesa limão do Julian Barnes
Morte em Veneza em vez d’A Montanha Mágica do Thomas Mann
A sangue-frio do Capote por preço de saldo
nenhuma poesia
uma lista que deambulou entre a mensagem electrónica de R.
e os escaparates das livrarias
sou demasiado preguiçosa para anotar os livros que leio
os meus livros de verão são
viagens por outros paralelos economato de impossibilidades

condensada sintaxe de figuras
ideogramas para a morte
agora que estamos quase na próxima estação
deixam-me em estado de alerta
entregam-me a insónias atravessam pesadelos diurnos
alimentam extensos dias de trabalho
nenhuma poesia repito excepto a que L. traduziu
o maior número de filmes possível entre o cinema e o clube de vídeo
o maior número de vezes para escutar
Zach Condon
Owen Pallet
Win Buttler e Regine
afasto-me pouco a pouco
imersa na invisibilidade que me atribui um final
esqueço-me dos mortos esqueço-me dos debates eleitorais desenho
raparigas de cabelo vermelho que escrutinam cutículas e digitam mensagens
em telemóveis de última geração

rapazes de penteados artificialmente revoltos personagens de
manga
mulheres-a-dias e os seus crochés
quero sentar-me ao largo das suas conversas
das suas pequenas misérias hospitalares
imaginar-me a solo sem desígnio
aguardando sem nada esperar
encontro-lhes porém outras histórias
às vezes aquelas que leio nos meus livros de verão
não estou de férias pouco descanso pouco durmo
a memória trai-me
o tempo falha-me
ausento-me do que não deveria
outros se ausentam de mim
um verão por interpostas leituras vou hoje arrumá-las
por ordem geográfica nas prateleiras do corredor.


(caneta sobre papel, setembro 2009)

30.8.09




(lápis e tinta-da-china sobre papel, agosto 2009)

21.8.09



© pedro morais



eden, inaccessible eden!

Arquivo do blogue

 
Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-Noncommercial-No Derivative Works 2.5 Portugal License.